RISCO DE POBREZA ATINGE 8,6% DA POPULAÇÃO EMPREGADA MESMO COM APOIOS SOCIAIS

Necessidades básicas: 1,1 milhões de pessoas em Portugal incapazes de viver com dignidade


Mais de um milhão de pessoas vivem actualmente em situação de privação material e social em Portugal, apesar da ligeira melhoria registada face ao ano passado, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística (INE). Os dados revelados hoje pelo INE também indicam que cerca de 440 mil trabalhadores empregados continuavam em risco de pobreza no ano passado, mesmo após transferências sociais, confirmando que o trabalho deixou de ser garantia de dignidade num país onde a carga fiscal incide com particular violência sobre quem menos tem.

Em termos concretos, a taxa de privação material e social recuou de 11,0% em 2024 para 10,2% em 2025. A descida relativa será, contudo, menos relevante em termos absolutos. Com efeito, no ano passado, essa taxa de privação corresponderia a cerca de 1,182 milhões de pessoas numa população próxima dos 10,75 milhões de habitantes. Embora não haja ainda estimativas da população portuguesa para 2025, o crescimento demográfico mais recente indica um aumento um pouco acima dos 100 mil habitantes em cada ano. Ou seja, em um ano apenas cerca de 80 mil pessoas saíram de situação de privação material e social.

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Saliente-se que este indicador não mede rendimentos abstractos, mas carências concretas. Em termos práticos, uma pessoa é considerada em situação de privação material e social quando, por falta de dinheiro, não consegue satisfazer pelo menos cinco necessidades básicas do quotidiano.

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A ligeira melhoria nacional esconde, porém, diferenças regionais profundas. As regiões Centro, Alentejo e Algarve apresentam as taxas mais baixas do país, com valores próximos dos 8% e 7%. Todas as restantes regiões estão acima dos 10%, com a situação mais grave a ocorrer nos Açores, com 15,7%, mesmo assim com uma queda de 1,7 pontos percentuais face a 2024. A Região Autónoma da Madeira também apresenta valores elevados (13,3%), mesmo assim uma queda de 1,8 pontos percentuais face ao ano anterior.

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No Continente, a pior região é o Oeste e Vale do Tejo com 12,8%, e que assume particular gravidade por ser a únicas que teve uma evolução negativa: em 2024 a taxa de privação material e social era de 11,9%. Já a Grande Lisboa (10,6%) e a Península de Setúbal mantêm-se acima da média nacional, confirmando que viver nas regiões economicamente mais dinâmicas não protege contra a privação, sobretudo quando o custo da habitação absorve uma parte crescente do rendimento disponível.

Mas o quadro torna-se politicamente incontornável quando se cruza este indicador com outro dado do INE. Em 2024, cerca de 8,6% da população empregada com 18 ou mais anos encontrava-se em risco de pobreza, mesmo após transferências sociais. Em termos absolutos, isto significa centenas de milhares de pessoas que trabalham e são apoiadas pelo Estado mas continuam em situação próximas da pobreza. O fenómeno da pobreza laboral é transversal: o Alentejo surge com 10,3%, os Açores com 10,0% e a Península de Setúbal com 9,7%. Mesmo regiões com maior dinamismo económico apresentam valores preocupantes. Trabalhar já não protege da pobreza.

A leitura destes números ganha ainda maior clareza quando ligada à estrutura fiscal portuguesa, uma das mais regressivas da União Europeia. Uma parte substancial da receita do Estado assenta em impostos indirectos, com destaque para o IVA, que incide de forma igual sobre todos os consumidores, independentemente do rendimento. Para quem vive em privação material, cada euro pago em IVA tem um peso real incomparavelmente maior do que para quem dispõe de margem financeira. A taxa é formalmente igual; o impacto é profundamente desigual.

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No IRS, o problema não reside apenas na progressividade formal das taxas, mas na sua combinação com salários estruturalmente baixos, deduções limitadas e um sistema que tributa cedo os rendimentos do trabalho. Para milhares de trabalhadores, o imposto sobre o rendimento contribui para um fenómeno cada vez mais visível: emprego sem segurança económica, em que o salário líquido não acompanha o aumento do custo da habitação, da energia e da alimentação. A isto acrescem as contribuições sociais obrigatórias, que reduzem ainda mais o rendimento disponível dos salários baixos e médios. Essenciais para financiar a protecção social, tornam-se paradoxais quando uma parte relevante dos próprios contribuintes permanece em risco de pobreza, mesmo depois das transferências.

Os dados do INE revelam, assim, um círculo vicioso: salários baixos, impostos indirectos elevados e custos fixos crescentes alimentam a privação material e explicam por que razão mais de um milhão de pessoas continuam privadas do essencial e por que motivo trabalhar deixou de ser garantia de dignidade. Não se trata de falhas individuais, mas de um modelo fiscal e económico que cobra como se todos fossem iguais num país profundamente desigual. Os números são do Estado. As conclusões políticas continuam por tirar.

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