CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

Fraca é a carne e fraco é o juízo

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Brás Cubas|17/12/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Somente a curiosidade perseverante dos desencarnados — tão íntegros no ócio como democraticamente repartidos entre a terra e os vermes — me poderia levar a deter o olhar na entrevista publicada no suplemento Fugas do Público, esse curioso caderno de viagens morais onde hoje se passeia indistintamente entre restaurantes, consciências, catecismos e negócios. Ali, uma psicóloga social e activista vegana, de nome Melanie Joy, discorreu longamente sobre a tese de servir a comida não para viver nem sequer para degustar os prazeres elementares da gastronomia, mas antes para significar, expiar, militar e, se possível, redimir o mundo inteiro entre os acepipes e a sobremesa.

Outrora, a refeição era um requisito objectivo da subsistência —mas agora surge, nas papilas teóricas da senhora Melanie Joy, investida de uma missão ética universal, como se o garfo fosse uma encíclica portátil e o prato um manifesto político pronto a salvar a Humanidade — desde que bem temperado.

Ora, debrucemo-nos de faca e garfo, como convém a um defunto com pretensões filosóficas, pelo princípio dos princípios. Comer, longe de constituir um exercício contingente ou uma metáfora edificante, é antes de tudo um acto obscenamente material: a boca abre-se, os dentes trituram, misturam-se sucos, e o estômago trabalha com uma diligência mecânica que nenhuma ética conseguiu abolir nem nenhuma teoria jamais sublimou. Antes de qualquer moral, há mastigação; antes de qualquer consciência, há digestão. Tudo o resto — ideias, sistemas, catecismos — virá depois, quando vem.

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Neste primeiro nível, tudo o mais é ornamento narrativo. Adão comeu o fruto e saiu do Paraíso, não por perversão filosófica, mas por curiosidade mastigável; Esaú vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas, provando que a fome argumenta melhor do que qualquer genealogia; o povo hebreu, já liberto, implorou para voltar ao Egipto com saudades das panelas de carne, preferindo a escravidão alimentada à liberdade faminta; Elias só pôde continuar a profetizar enquanto os corvos lhe trouxeram pão; e o próprio Cristo, antes de debater o Reino dos Céus, teve de discutir com o estômago no deserto. A Bíblia, quando lida sem incenso, ensina uma verdade elementar: a metafísica começa sempre depois da digestão.

Num segundo plano, histórico e pragmático, a comida revela-se não como símbolo moral, mas como condição de possibilidade da própria vida social. Nada há menos filosófico, neste sentido, do que a mecânica da mastigação. Diógenes, mesmo vivendo num barril, aceitava de bom grado o que lhe dessem para comer, desde que não viesse acompanhado de lições morais — prova de que o cinismo tolera a pobreza, mas não a pedagogia. Os romanos discursavam longamente sobre virtude cívica, mas sabiam que o império se mantinha menos pela retórica do Senado do que pelo trigo do Egipto e pelo pão distribuído ao povo; quando este faltava, a filosofia era rapidamente substituída por motins.

Nas cidades medievais, a ordem social dependia menos da escolástica do que da regularidade das colheitas e do preço do pão. Até os monges, mestres do ascetismo verbal, jejuavam para domar a carne, mas inventaram receitas suficientemente engenhosas para tornar a renúncia suportável. A história do espírito humano, vista sem solenidade excessiva, é também a história dos seus compromissos com a panela — e quase nunca o contrário.

Por fim, num terceiro nível — o único onde a filosofia ousa meter o garfo —, a comida surge como limite absoluto das abstrações morais. Gargântua — e, com ele, Pantagruel — fizeram da gula um método pedagógico e da digestão uma forma elementar de inteligência. O fiel escudeiro manchego de Dom Quixote, mais sensato do que todos os cavaleiros andantes, pensava melhor de pança cheia. Até Kant, esse rigorista do dever, precisava de horários fixos para as refeições — sinal inequívoco de que a razão pura não se sustenta sem sopa.

Na guerra, Napoleão lembrava que um exército marcha sobre o estômago. Na fábrica, Henry Ford percebeu que trabalhadores alimentados produzem mais do que consciências despertas por panfletos — uma intuição prática que Marx nunca conseguiu pôr à mesa. Na navegação, os almirantes sabiam que motins começavam menos por ideais do que por bolachas rançosas e carne salgada em falta. Na política, Bismarck governou com ferro e sangue, mas garantia refeições regulares ao funcionalismo, certo de que a disciplina enfraquece quando o almoço falha. Na administração do quotidiano, até Maquiavel recomendaria prudência a um príncipe faminto, pois nenhum Estado se sustenta sobre bocas vazias. E na literatura — sempre mais honesta do que os programas políticos —, Brecht resolveu a questão sem adornos metafísicos: primeiro vem o comer e só depois a moral.

Nunca, em nenhum destes casos, a comida foi, portanto, previamente convocada como instrumento de redenção universal. O desiderato do alimento é nutrir o corpo, serenar o espírito, prolongar a conversa, se necessário — e seguir-se na vida. A comida sempre foi um meio, não um catecismo; uma necessidade, não um manifesto; um prazer, não uma penitência. Só agora há quem queira que a faca se torne um instrumento de análise psicológica, a travessa uma espécie de espelho da alma e que cada garfada implique uma tomada de posição ontológica, política e moral, como se o ventrículo gástrico fosse uma assembleia deliberativa e o prato um tribunal de última instância.

Segundo a nova metafísica alimentar — exposta com convicção missionária na teoria da senhora Melanie Joy —, quem mastiga carne dilacera também a empatia, o humanismo, a igualdade e, por arrasto lógico, esfacela a democracia, a paz mundial e, talvez, o bom gosto musical. Comer um bife passou a ser um acto suspeito, quase um pequeno golpe de Estado contra a sensibilidade universal.

Confesso que me comove esta confiança ilimitada na capacidade simbólica da comida. No meu tempo, uma galinha com pirão era apenas uma galinha cozida acompanhada de papas salgadas de mandioca — hoje é um manifesto. Um ensopado de carne-seca já não é um prato concebido para sustentar o corpo — é um tratado de dominação interseccional. E um simples feijão com charque deixou de ser comida de estômago para se transformar num diagnóstico moral, político e psicológico do comensal. O carnívoro deixou de ser alguém com fome e passou a ser um caso clínico: um ser dessensibilizado, desligado moralmente, um bárbaro de guardanapo ao pescoço.

E aqui entra, pois então, a Psicologia — essa ciência respeitável, quando modesta, e perigosíssima, quando moralista. Em vez de estudar comportamentos concretos, resolve-se explicar o mundo inteiro a partir do prato alheio. O método é simples: escolhe-se uma prática humana antiquíssima, universal e biologicamente explicável; cobre-se tudo com um verniz ideológico contemporâneo; e declara-se, por fim, que quem não adere à nova moral sofre de défice empático. Galeno, se se lembrasse disto, ficaria orgulhoso; Torquemada, emocionado.

O mais curioso é que esta nova filosofia alimentar, tão preocupada com a empatia pelos animais, revela escassa simpatia pelos humanos — esses seres contraditórios que comem, amam, cuidam, erram e convivem sem pedir licença a um comité ético global.

A humanidade concreta, com as suas cozinhas, tradições, geografias e pobrezas, é substituída por um humano abstracto, ideal, que come correctamente e pensa da forma certa. Quem come carne padece, de forma irredutível, de uma masculinidade patriarcal autoritária, dominadora e historicamente cúmplice de todos os horrores — do genocídio ao mau tempero —, enquanto os que não comem carne são criaturas eticamente superiores, dotadas de empatia expandida, consciência planetária e uma superioridade moral que dispensa contraditório.

Para a senhora Melanie Joy, a carne não é alimento — é ideologia mastigável. O bife não entra pela boca — entra pelo inconsciente, onde instala um pequeno ditador de avental. O churrasco, esse ritual bárbaro, nada mais é do que uma aula prática de dominação simbólica; a chouriça, uma falocracia pendurada; o entrecosto, um manifesto reaccionário. Comer é votar — e quem vota no animal grelhado vota invariavelmente contra a Humanidade.

Enfim, para a senhora Joy, jamais haverá alegria no mundo sem o veganismo. A fome, a guerra, a desigualdade, a estupidez e até as alterações climáticas resolver-se-iam com uma simples mudança de dieta. Troque-se a chanfana da Serra da Lousã por grão-de-bico e cessará o conflito na Faixa de Gaza, ver-se-á Putin a colher alfaces com Zelensky, e até André Ventura a comer tofu, em vez de caldeirada de borrego, num casamento gitano nos arrabaldes de Moura.

Permitam-me, nutridas donzelas e cevados cavalheiros, uma derradeira heresia póstuma: não foi a carne que inventou a crueldade, nem a salada que produziu a virtude. Houve tiranos vegetarianos, santos glutões, assassinos ascetas e caridosos apreciadores de enchidos. A História, essa senhora inconveniente, recusa alinhar-se por regimes alimentares. Se Esparta comia pouco, matava muito; e se Roma comia de tudo, construiu estradas e aquedutos — e até, hélas, poemas medíocres.

Já os vermes que me desossaram me diziam: comer é somente um acto comezinho, no sentido mais nobre do termo — liga à terra, ao corpo e ao tempo. Retirar ao alimento essa dimensão para o transformar num exame de consciência permanente é uma forma subtil de desprezo pelo humano tal como ele é. Talvez seja isso que mais me diverte nesta nova moral de talheres: proclama-se empatia universal enquanto se olha com desdém para o vizinho do lado — sobretudo se ele pedir carne.

Termino como convém a um defunto sincero: enquanto vivo, comi porque tinha dentes, fome e circunstância. Não fiz da mesa um tribunal nem do jantar um catecismo. E, se isso me tornou menos humanitas aos olhos dos novos filósofos do menu, imploro indulgência. Se eu, Brás Cubas, tivesse sabido que o meu maior pecado não foi a vaidade, nem a inutilidade, nem o amor mal administrado, mas a ausência de reflexão sobre o conteúdo do prato, talvez tivesse morrido mais cedo — de riso ou de fome.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas

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