CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

A exortação do Dr. Luís Montenegro: um CR7 por dia, não sabe o bem que lhe fazia!

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Brás Cubas|27/12/2025

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CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

(não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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Começo esta crónica por uma elevação filosófica, não porque resolva o assunto, mas por o adornar. Sempre assim foi: quando o pensamento não chega, a retórica sobe — como incenso em templo vazio. Os antigos suspeitavam disso; desde Aristóteles, que chamou ao homem animal político, já se intuía que a política começa muitas vezes onde a reflexão acaba. Eu, porém, com a vantagem da morte e da desilusão acumulada, direi que os homens são antes um animal simbólico, dado a trocar a aspereza das ideias pelo conforto imediato das imagens, como quem prefere o vitral à fundação.

Conservando os vícios, a Humanidade muda de amos sem desmontar os altares: já se ajoelhou diante dos santos; já exaltou heróis — alguns dos quais, in extremis, escaparam por pouco à corda no pescoço por traição —; já obedeceu a generais de peito enfunado; e chegou mesmo a fiar-se em economistas, e pior ainda, em advogados, com idêntica fé e semelhante ingenuidade. A vossa era, agora mais prática e pragmática, mais televisiva do que reflexiva, prefere atletas. Não exigem coerência, não pedem explicações e cabem perfeitamente num discurso de ocasião, porque são a alegoria ideal para quem deseja parecer profundo sem tocar no fundo, sendo superficial com método.

Foi assim que o vosso primeiro-ministro, Luís Montenegro, em tom solene e expressão grave, resolveu oferecer ao país dos Descobrimentos — que in illo tempore dividiu com Castela o Mundo em duas metades — não um plano, não uma estratégia, não uma política, nem sequer uma promessa, mas uma metáfora: a mentalidade de um futebolista. Confesso que, deste meu confortável além, sorri com ternura maldosa: há qualquer coisa de comovente na fé que certos governantes depositam em frases que não precisam de orçamento, como se a gramática pudesse substituir o erário.

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Não se zombe do atleta, Cristiano Ronaldo — longe disso. Embora não seja um Camões, que fundou uma língua; nem um Vasco da Gama, que abriu o mundo; nem um Fernão de Magalhães, que o circundou; nem um Egas Moniz, que o esclareceu, o futebolista da Madeira fintou adversários, acelerou em sprints quase mecânicos, rematou com o pé esquerdo e com o direito, cabeceou com precisão aérea, executou pontapés de bicicleta e converteu livres e penáltis com método e obstinação, acumulando golos e troféus, como um contabilista aplicado do êxito físico.

Como poucos, ou nenhuns, fez ele do próprio corpo um instrumento de eficácia absoluta, disciplinado até à exaustão e afinado para o êxito competitivo, num ascetismo muscular que faria inveja a certos monges menos convictos. Dir-se-ia que Cristiano Ronaldo está, à escala lusitana, como o Discóbolo de Míron, o Doríforo de Policleto e o Apoxiómeno de Sicião estiveram para a Grécia Antiga: a apoteose do corpo educado, perfeito no gesto, mas mudo quanto ao destino da pólis.

Por isso, aquilo que me espanta não é o seu sucesso individual de Cristiano Ronaldo — legítimo e meritório —, mas a sua canonização política, esse baptismo apressado que dispensa catecismo.

Transformar uma excepção estatística num modelo nacional é, como se sabe, expediente antigo, muito caro aos moralistas preguiçosos como Luís Montenegro: preferem o exemplo que comove à ideia que obriga a pensar, o caso singular à regra incómoda. Esta lógica é simples, quase bíblica, mas do Antigo Testamento lido à pressa e sem exegese: quem vence é justo; quem perde falhou na fé.

A política, essa arte ingrata de escolher entre males concretos, dissolve-se assim numa moral ligeira, portátil e sem custos. A desigualdade deixa de ser estrutural e passa a ser psicológica. E o problema do povo não é ter o campo inclinado — é a falta de crença no remate, como se a gravidade fosse questão de atitude.

Mas façamos justiça à metáfora de Montenegro e levemo-la até ao fim, como convém aos raciocínios honestos e às autópsias bem feitas. A nação que vos propõem é um país que avança a pontapé e insiste à cabeçada. O progresso de Luís Montenegro faz-se com os pés: rápido, impulsivo, barulhento. A persistência resolve-se com a testa: dura, repetida, indiferente às consequências, como certas ideias fixas.

As mãos, porém, serão sempre suspeitas — não por roubarem, mas por planearem. As mãos constroem. As mãos regulam, redistribuem, corrigem. As mãos exigem intenção e responsabilidade. Logo, mão na bola. Falta.

Política de saúde? Mão! Falta.
Política de educação? Mão! Falta.
Política industrial? Mão! Falta.
Política social? Mão! Falta.
Transparência? Mão! Falta.
Planeamento a longo prazo? Mão! Falta deliberada — e ainda protestam com o árbitro.
Decência política? Mão! Expulsão por falta de fair play.

Nesta ética futebolizada da governação, o Estado ideal jamais age: exorta. Não organiza: motiva. Não corrige: aconselha resiliência. Governa como um treinador de bancada, desses que gritam muito, gesticulam com convicção e nunca são culpados pelo resultado final. Se ganham, foi pela mentalidade que inculcaram; se perdem, faltou crença — e não governo.

A ironia — essa velha amiga dos mortos atentos — é que o futebol verdadeiro, aquele que realmente vence e dura, é feito precisamente do que este discurso de Montenegro despreza: método, disciplina, organização, investimento silencioso, paciência histórica. Sem isso, não há craques; há correria e fé excessiva no improviso.

Até os mitos sabiam disso: Hércules tinha força, mas precisava de tarefas claras; Ícaro tinha ambição, mas voos nas asas da imprudência e caiu; Prometeu trouxe o fogo, mas foi castigado por dispensar as regras — a civilização, ao contrário do discurso, cobra sempre juros.

Historicamente, este tipo de discurso, encaixado agora por Luís Montenegro em mensagem natalícia, surge sempre que o poder entra em fadiga intelectual. Quando já não sabe para onde ir, aponta para quem já chegou com mérito a algum lado — e Cristiano Ronaldo estava ali ao pé, como um cartaz providencial. Quando não consegue explicar o caminho, celebra o destino do outro. Se vivo fosse, Maquiavel, que tinha pouca paciência para ilusões edificantes, avisaria o vosso primeiro-ministro de que governar por aparências é eficaz — mas apenas por algum tempo, e nunca sem factura.

Sociologicamente, o gesto de Montenegro é, porém, de uma elegante crueldade. Pede-se a um país envelhecido, desigual e mal pago que adopte a mentalidade de quem escapou precisamente a essas condições. Promete-se igualdade de expectativas mantendo intacta a desigualdade de meios. E depois, quem não chega ao destino não foi excluído — foi frouxo. Quem cai não foi empurrado — faltou-lhe atitude, essa categoria metafísica que tudo explica e nada resolve.

Politicamente, o ganho do vosso primeiro-ministro aparenta ser imediato e confortável. Elimina-se o conflito: quem critica não discute — desanima; quem questiona não propõe — atrapalha; quem exige regras mais justas não ambiciona — joga para empatar. Assim se governa, sem governar, substituindo escolhas difíceis por metáforas inatacáveis e frases que soam bem ao ouvido cansado, como música ambiente.

Audazes leitoras e altaneiros leitores, eu, que nunca tive estima especial pela Humanidade, reconheço aqui um velho expediente: o poder que se absolve culpando os governados. Não falhámos nós; falhaste tu. Acertámos no desenho; faltou-te garra. É a política reduzida a sermão motivacional, com a vantagem adicional de dispensar resultados mensuráveis, esse incómodo hábito da realidade.

E termino — porque até os mortos se fartam do óbvio — com uma verdade singela, que vos ofereço como dádiva natalícia: um país não se constrói a pontapé no futuro nem à cabeçada contra a realidade. Constrói-se com mãos firmes, ideias claras e a coragem, raríssima, de governar sem metáforas emprestadas. Tudo o resto é barulho de estádio: entusiasma, distrai mas mostra-se fútil, inútil — e acaba sempre em silêncio ao fim dos noventa minutos. E assim, nem os descontos vos salvarão.

Adeus, e um piparote.

Brás Cubas

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