GESTICOPTER TEM CAPITAL SOCIAL DE 5.000 EUROS E GANHA CONTRATO DE 20,1 MILHÕES
Cunhado do ministro Leitão Amaro só comprou a empresa de helicópteros há dois meses

O cunhado do ministro Amaro Leitão, o empresário Ricardo Machado – que passou a ostentar também o apelido Leitão depois de casar com uma irmã do governante – apenas comprou em Março passado a empresa contratada pela Força Aérea para fornecer três helicópteros para combate a incêndios rurais por cerca de 20 milhões de euros, com IVA. A empresa em causa, a Gesticopter Operation Unipessoal tem sido apontada como uma das visadas na operação ‘Torre de Controlo’.
De acordo com elementos recolhidos pelo PÁGINA UM, a empresa em causa, a Gesticopter Operation, foi criada em Março de 2024, mas nessa altura ainda não tinha qualquer ligação ao familiar do actual ministro da Presidência. De facto, a sociedade, que apresenta um capital social de apenas 5.000 euros, teve como primeiro proprietário a Gestifly, uma empresa surgida em 2021 e que, em apenas três anos, acumulou contratos milionários com o Estado português – todos por ajuste directo – no sector altamente rentável da locação de meios aéreos de combate aos fogos florestais.

Segundo os registos do Portal Base, a Gestifly celebrou quatro contratos com o Estado-Maior da Força Aérea no âmbito do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR), todos em 2024. O primeiro, com data de 16 de Janeiro, refere-se à aquisição de serviços no valor de 3,8 milhões de euros. Seguiram-se, a 9 de Maio, mais 2,3 milhões de euros; a 3 de Junho, um novo contrato por 3,7 milhões de euros; e finalmente, a 7 de Agosto, o mais modesto, mas ainda assim expressivo, montante de 870 mil euros. No total, só com a Força Aérea, a Gestifly encaixou mais de 10,5 milhões de euros (sem IVA) em contratos de aluguer de meios aéreos no espaço de sete meses.
Já a Gesticopter, que acabaria por substituir a Gestifly – que deixou de concorrer aos meios aéreos, tendo apenas um pequeno contrato de pouco mais de 5 mil euros de venda de combustível à Força Aérea –, não registou qualquer contrato com o Estado ao longo de 2024. Contudo, nos últimos meses do ano passado e no início deste ano, começou a apresentar-se como concorrente em vários concursos públicos.
Os dados recolhidos pelo PÁGINA UM mostram que a empresa participou em mais de uma dezena de concursos lançados pela Força Aérea nos últimos seis meses, sempre contra um lote recorrente de concorrentes do sector. A aparente repetição e previsibilidade das empresas candidatas – algumas das quais dificilmente teriam capacidade para assegurar todos os meios exigidos nos cadernos de encargos – suscitam, aliás, fundadas suspeitas de cartelização. Tal como não se monta um rent-a-car do dia para a noite, muito menos se arranjam helicópteros pesados de combate a incêndios com simples telefonemas ao fornecedor. Em muitos casos, as empresas subcontratam meios aéreos aos concorrentes que perderam concursos.

A entrada de Ricardo Leitão Machado na Gesticopter fez-se através da Helifinance Asset Management, uma sociedade espanhola com sede em Madrid, constituída em Fevereiro de 2024. Formalmente, a compra da Gesticopter Operation, por valores desconhecidos, ocorreu a 12 de Março deste ano, segundo os registos comerciais consultados pelo PÁGINA UM.
Curiosamente, em nenhum desses registos consta o nome do cunhado do ministro como sócio ou gerente, mas a consulta ao Registo de Beneficiário Efectivo revela que Ricardo Leitão Machado é o proprietário integral quer da Gesticopter, quer da Helifinance. Contudo, há algo surpreendente: nos registos de beneficiário efectivo, o nome de Ricardo Leitão Machado surge como titular das duas empresas desde a primeira quinzena de Janeiro, ou seja, antes mesmo da aquisição formal da Gesticopter. A incongruência entre os registos não deixa de levantar dúvidas sobre a transparência do processo de aquisição e da verdadeira data de entrada de Ricardo Leitão Machado no negócio.
Também pouco transparente é o contrato celebrado entre a Força Aérea e a Gesticopter. Contrariando a lei – e mesmo decisões sobre esta matéria do Tribunal Administrativo, por estarem em causa actos administrativos em funções públicas –, a Força Aérea rasurou tanto o nome do adjudicante como do adjudicatário. Ou seja, ignora-se ainda quem da Gesticopter assinou o contrato. No caso da Força Aérea, é apagado o nome de quem assina o contrato, mas mantém-se a referência ao cargo: chefe do Serviço Administrativo e Financeiro. Esta função é actualmente ocupada pelo coronel Carlos Miguel de Amorim Inácio, que é economista.

O contrato de 20,1 milhões de euros (quase 16,4 milhões sem IVA) agora atribuído à Gesticopter pela Força Aérea, para fornecimento de três helicópteros pesados durante três anos, constitui assim a primeira adjudicação pública da empresa sob a nova direcção. Mas não deixa de ser inquietante que uma empresa sem qualquer histórico de execução de contratos semelhantes, com um capital social mínimo e sem meios próprios conhecidos, vença um concurso desta dimensão.
A avaliação de risco por parte da Força Aérea levanta, por isso, justas interrogações. Afinal, o custo de um helicóptero com as características técnicas exigidas pelo concurso oscila, segundo fontes especializadas contactadas pelo PÁGINA UM, entre 7 e 25 milhões de euros por unidade, dependendo do modelo, estado e equipamentos opcionais. Como pode uma empresa com 5.000 euros de capital social garantir três helicópteros, com estas especificações, por três anos, e cumprir as exigências operacionais e de manutenção previstas nos cadernos de encargos? Com meios próprios ou subcontratando concorrentes, ficando apenas com uma comissão?
Saliente-se que este contrato não é, contudo, a primeira experiência de Ricardo Leitão Machado associado ao sector florestal. Há uma década, segundo uma investigação da revista Visão publicada no início de Agosto de 2022, o cunhado do ministro da Presidência foi arguido num processo judicial relacionado com fraudes no acesso a apoios do Fundo Florestal Permanente. No processo, julgado no Tribunal de Sintra em Outubro de 2014, o empresário foi inicialmente acusado, juntamente com três outros arguidos, de burla qualificada e falsificação de documentos.

Durante o julgamento, veio a ser alegada – e aceite pelo tribunal – a reparação integral dos prejuízos causados aos lesados, nomeadamente ao BPI, que reclamava cerca de 321 mil euros. Essa reposição permitiu a extinção da responsabilidade criminal pelo crime de burla, mas o julgamento prosseguiu quanto à falsificação de documentos, pelo qual Ricardo Leitão Machado acabaria condenado a pagar uma multa de 10.000 euros. Tentou ainda recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas sem sucesso.
No seu percurso empresarial, Ricardo Leitão Machado, que conta 45 anos, tem acumulado projectos e interesses diversos, incluindo a criação de cavalos e direitos nas Termas de Monfortinho, tendo também adquirido a Herdade do Vale Feitoso, uma propriedade com 7.300 hectares, que pertenceu a Ricardo Salgado. Terá pagado 25 milhões de euros. O cunhado de Amaro Leitão também teve negócios em Angola, onde terá enriquecido sobretudo durante o ‘reinado’ de José Eduardo dos Santos. Com a presidência de João Lourenço, os negócios complicaram-se. Em 2019, o Estado angolano arrestou os activos de uma sua empresa, a Aenergy, acusando-a de fraude num negócio de turbinas de mil milhões de euros. O caso está ainda num tribunal arbitral nos Estados Unidos.