EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC

No Dia de Portugal, a 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge proferiu em Lagos um discurso em que evocou, além da multiculturalidade e da miscigenação do povo português ao longo da História, o papel decisivo de Camões na fixação de uma “língua nova à altura de um pensamento novo”. Mais do que tudo o resto, subscrevo a ideia de que aquilo que verdadeiramente marca Portugal é ser uma Nação — algo que se distingue de um simples país por deter um património que transcende as fronteiras da biografia ou do território.
Mas mais do que o conceito de Nação, atrai-me o conceito de portugalidade, porque esse é o traço mais subtil e profundo que molda o nosso modo de ser e de resistir — um sentimento que não cabe em estatutos nem se impõe por decreto. E que começa na língua, mas se reflecte, ou deveria reflectir-se, sobretudo no nosso olhar irónico perante o poder, na resistência ao absurdo, na memória entranhada das partidas e regressos, no génio de reinventar-se com poucos meios e no talento invulgar de desconfiar de tudo, inclusive de nós próprios. E isso tem-se perdido.

Tem-se perdido porque se esvaziou o orgulho em promover Portugal como berço de uma língua com História. Mas o que mais dói é que esta erosão não resulta de ataques externos ou de falantes estrangeiros que tropeçam nos seus sons e ritmos — mas sim de gestores públicos, decisores políticos e instituições nacionais que tratam a língua como um adereço cerimonial ou, pior, como um entrave à modernidade cosmopolita.
Veja-se, por exemplo, o que fez recentemente a AICEP, ao conceber o pavilhão de Portugal para a Expo 2025 em Osaka, omitindo ostensivamente o uso do português em quase toda a exposição — como se a identidade nacional se limitasse a branding, fado, cortiça e arquitectura de interiores.
Mas o caso mais gritante — e de consequências directas — passa-se com a RTP, televisão pública que todos os portugueses são forçados a financiar. Por via da factura da electricidade, os contribuintes canalizaram, nos últimos cinco anos, quase mil milhões de euros para uma empresa que tem, entre as suas obrigações legais, uma missão clara: promover e difundir a língua portuguesa, independentemente de audiências, quotas de mercado ou modas.

Ora, aquilo que se exige à RTP não é um capricho cultural nem uma imposição ideológica. É uma norma legal expressa, consagrada no artigo 44.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que estabelece que os canais com cobertura nacional, como a RTP2, devem emitir, anualmente, pelo menos 50% da sua programação em língua portuguesa, excluindo publicidade, televenda, autopromoções e serviços de teletexto. E, dentro dessa quota, pelo menos 20% deve corresponder a obras criativas produzidas originariamente em português, contando-se até às cinco primeiras exibições de cada obra.
Não são meras orientações: são obrigações legais que visam preservar o espaço público audiovisual como território da nossa Cultura. Deveriam ser consideradas sacrossantas.
Porém, pelo menos desde 2017, a RTP2 tem incumprido sistematicamente ambas as exigências. Durante cinco anos consecutivos, pelo menos, por agora, até 2021, falhou o mínimo de 50% de programação em português e nunca atingiu os 20% de obras criativas originais. Tudo documentado em relatórios públicos da ERC. E, ainda assim, nenhuma consequência prática.

Num país decente, uma infracção sistemática como esta teria consequências óbvias: demissão da administração, apuramento de responsabilidades políticas e aplicação de sanções efectivas. Mas em Portugal, as obrigações legais são tratadas como metáforas regulamentares — enunciados solenes sem qualquer valor operativo. As normas existem, sim, mas para parecerem existir. E a ERC, em vez de agir com firmeza, entretém-se há anos a “instar”, numa coreografia burocrática onde a indignação nunca chega e a penalização nunca dói.
Por cada infracção anual por incumprimento dos limites mínimos de emissão de programas em língua portuguesa e de produção nacional, a RTP poderia ser punida com uma coima de até 200 mil euros. Considerando que se verificaram dois incumprimentos por ano, o valor acumulado poderia, em teoria, ascender a 400 mil euros. Mas a ERC, magnânima e indulgente, decidiu sancionar de forma simbólica: em 2023, aplicou uma multa de 15 mil euros, e mandou o INBAN para a RTP pagar. E no mês passado, numa deliberação tornada pública esta semana, subiu generosamente a fasquia para… 16 mil euros.
Isto não chega para pagar dois episódios de uma série de segunda linha, e nem atinge o bolso e o cargo dos administradores e directores de programa da RTP. E é uma quantia que nem sequer incomoda uma estrutura mastodôntica com orçamento anual a rondar os 200 milhões. É, na prática, uma palmadinha indulgente, um convite à reincidência, uma forma discreta de arquivar o incómodo. Como se dissesse: “Sim, falharam, mas enfim… todos falham. Continuem.”

Portugalidade? Isso parece uma maçada para a RTP — mas também uma irrelevância para a ERC, que aplica multas como quem distribui advertências escolares a alunos preguiçosos. E, para os portugueses — esses que financiam tudo isto através da factura da luz —, uma palavra vazia, que serve para discursos floridos no 10 de Junho, mas que, no dia seguinte, já ninguém quer levar a sério. Muito menos quem devia levá-la à letra.
E, com igual certeza, haverá mais um discurso, em português irrepreensível, a entoar loas cerimoniosas à Portugalidade — enquanto, nos bastidores, se continua a tratá-la como um empecilho dispensável.